Maíra das Neves is paused 





Um Lance de Cartas

A Deal of Cards
solo show at Portas Vilaseca Galeria,
Rio de Janeiro, 2013
opening performance also
with the neighbour carpet shop
Daghestan Tapetes Orientais












fotos: Pedro Victor Brandão





Um Lance de Cartas | Maíra das Neves

Beatriz Lemos


A primeira carta me diz que parece poder escolher livremente. Ao lado, vejo um gesto vertical forte, cilíndrico e azul celeste, que adentra uma base preta. Logo daí (imagino) e sinto os nervos chacoalhando sozinhos. Ela me olha e não fala nada. Fico querendo saber mais: motivos, intuições, respostas. Mas nada há mais do que está posto na mesinha. E nesse instante, o jogo é meu. Sou eu que vou me dizer o que quero saber.

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Um Lance de Cartas, exposição de Maíra das Neves, acontece a partir do momento descrito acima: a aleatoriedade das cartas de vinte e seis pessoas e o ensejo do diálogo sobre vida e mundo. Uma leitura sem pretensões divinatórias subjetivas, pelo contrário, o conteúdo das cartas nitidamente pertence a todos nós, em qualquer situação que nos encontremos. Porém, a reflexão suscitada a partir do jogo individual é o que interessa a artista. Na ação realizada na noite de abertura da mostra, questões intrínsecas à sua pesquisa e à construção do trabalho são abertas ao público. Como é sentir uma imaginação? Ou como seria a tradução em palavras de um estímulo visual? É possível haver sincronicidade em frases colhidas em bares, noticiários e do saber popular?
Maíra escolheu a loja de tapetes Daghestan, do Sr. José Francisco, vizinha à galeria Portas Vilaseca e instalada no mesmo local há 21 anos. Lá também se vende e negocia obras de arte. Sobre um tapete de orações de mais de um século (garantia de seu Francisco), a ação se realiza. No local ao lado (agora, já na galeria de arte), a exposição vai surgindo como constelação sobre uma parede azul petróleo (um azul indefinido, nulo de certezas, um espaço entre - sem lugar para o cubo branco). A decisão por um deslocamento espacial/contextual para a leitura das cartas aponta para uma curiosidade da artista em experimentar este ambiente singular do entorno, lidando, por exemplo, com códigos relacionais entre comerciantes estabelecidos nesta galeria de lojas no bairro do Leblon, zona sul do Rio. Negociatas, oralidade, discurso e eventos fazem parte do universo de pesquisa da artista e estão presentes por toda sua obra. Contudo, o desvio realizado por Maíra também direciona o trabalho para uma crítica própria do sistema de arte atual que nutre a espetacularização do artista e de sua obra, fazendo da ação o fetiche. Portanto, para a artista, não se trata de uma performance, é metonímia pura.
“Eu respondo ao lugar em que estou. E esse lugar são vários, É geolocalizado, é social, é espiritual. Eu faço a partir de.”
Contexto, ação e resultado. A tríade contida no baralho Urgência parece ser uma síntese do mundo. Reverberações captadas pela artista e pintadas em aquarela com referentes na poesia concreta, no I Ching e no Haikai, as setenta e oito cartas que compõem vinte e seis jogos com três naipes distintos reúnem em estrutura de ideogramas aspectos da sociedade, natureza e corpo humano. Cartesianamente pensados por Maíra, cada naipe ainda contém subgrupos de argumentos, possibilitando uma maior apreensão do universo do outro.
Poder, espiritualidade, economia e trabalho fazem parte de um contexto social universal e estão presentes no primeiro naipe por frases encontradas ao acaso pela artista e apresentadas como estratégias de aproximação. Não há convicções, mas parece que estamos condenados à civilização. Estações do ano e elementos da natureza são influências para o segundo naipe, que consiste em estímulos visuais abstratos de gestos firmes e precisos. E, por fim, o terceiro naipe compreende sensações físicas operadas pelos sistemas do organismo humano e os sentidos. Sensações reais, descritas à artista por diversas pessoas em ocasiões reais ou imaginadas.
O contexto imprime ação no corpo.

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Em uma última conversa, Maíra me sugeriu pensar Um Lance de Cartas em termos fotográficos. Poderiam os textos ser como snapshots do mundo (naipe 1), ou do interior do corpo (naipe 3), ou como um fotograma onde há registro de movimento/impressão/carimbo (naipe 2). Em uma sala especial, escura e vermelha, acontece a revelação, e depois se pendura os papéis para secar. Uma exposição de retratos. Respondo a ela com um de seus naipes que, imediatamente, me chega à mente: parece que/ não podemos esperar/ que algo mude/ se continuarmos/ presos na mesmice.